quarta-feira, março 23, 2005

Survivors

“Para Ducia Schoikhet, uma sobrevivente do holocausto”

Anjos de asas cansadas,
de tantos vôos, ritmo duvidoso,
deixam cair em solo fertil,
inerte semente de história.

Com a ilusão de humanizar suas asas
posicionam num único instante,
toda a saga de meio século,
mas, ah..., anjos não se humanizam,
apenas são, apenas voam, apenas flutuam.

Com a dolorida consciência de que cairão,
depositam a meus inertes pés,
a não menos amarga memória:
depoem armas de dias vividos à sua revelia.

Por ter sobrevivido? Já não se sabe.
Porque são anjos, de asas exaustas.
Quase já não voam, penoso último esforço,
antes da inevitável queda-luz,
em direção à seu último disfarce.

Uma vez mais, ainda:
aprisionando imagens de papel,
imortalizando a massa mortal,
planando nos ventos quentes,
gerados pelo derradeiro pulso:
sangue posto em movimento
por um coração ensandecido de rebeldia contra a morte.

Falam com a morte todo o tempo,
passado e futuro,
esses anjos improváveis.
Negociam cada minuto.
Contra a gravidade, cada grão de areia conta,
a desacelerar a ampulheta,
desse real quarto de espelhos paralelos
a ofuscar-me a noção da verdade.
Trazem cores, luzes, afagos,
atingindo olhos, já não existindo,
como uma estrêla que tendo explodido,
lança sua doce imagem,
para crianças que apontarão
sem medo de verrugas nem de bruxas.

Trazem sabores, odores, antigamentes,
impossíveis audiovisuais,
iludindo na imagem de uma só pessoa,
em frente a uma câmera imóvel,
olhos ávidos que assistirão
ao mais belo filme de amor.

Amores secos, flores mortas, asas cansadas.
Muito,
brindam então à vida, e apenas cessam:
mergulham para dentro de tudo que pode
e tudo que não pode ter acontecido.

Por fim, o último e vão desejo humano:
preservar tradições
sem que o passado se repita.


Paulo Baroukh 1998
pbaroukh@gmail.com